António, bisavô: sempre cri que o veneno que tenho no sangue (que há
quem chame arte) é culpa tua. Sempre cri que era uma maldição, uma
maldição sublime, mas uma maldição. Que nos tortura, porque exige, para
bons resultados, o sobre-humano ou a negação do humano. Exige silêncio e
minimalismo, como se fôssemos edifícios (diz que somos), tantas vezes
geometria e cálculos, mas em nós é carne, é uma torrente descontrolada,
um rio a galope fora das margens, olho para as tuas mãos e para as
minhas e são iguais, tu davas ou tiravas forma ao nada ou ao tudo,
desenhavas, esculpias, modelavas, eu não faço diferente com as palavras,
às vezes, quase sempre, tenho de as deixar quietas, os blocos
intocados, posso morrer sem nunca mexer em algumas frases. E quando,
subitamente, o objecto da arte és tu, toma-me esta obsessão que me leva
para perto de um estado que me parece a loucura, essencialmente posso
defini-lo como uma solidão intraduzível e no entanto barulhenta, tão
barulhenta que posso ser um artefacto pirotécnico em pleno céu de são
joão, expludo e ilumino as nossas cidades durante breves segundos e
depois caio no douro - às vezes tento ser um balão de papel, posso
divagar, subir, mas caio sempre. Caio em chamas, caio sempre em chamas, e
depois apago-me. Olho-te profundamente nesses olhos quase frios em que
preservas tudo de ti e, claro, vejo-me a mim. Como se estivesse a comer o
meu próprio corpo sem a metáfora, bela metáfora, de cristo, embora os
teólogos digam que não é metáfora nenhuma. Vai ser assim nos próximos
cinco anos, estarei gravemente doente de ti, afinal como tenho estado a
vida toda, há sempre um sobressalto quando passo na boavista e fico
fixado no leão do alto ou na mãe que morre afogada com o filho nos
braços ou na tua campa ou na tua rua ou nas fotografias que guardo. Mas
tu seres o objecto das minhas mãos é perverso. A sensação é a de estar
sempre a chorar e a cara seca. É uma fraqueza titânica. Uma força
transcendente. Componho o teu corpo de volta como uma espécie de
frankenstein. Sei que vais falar a qualquer momento, que me vais tentar
travar, talvez até devorar, mas os nossos olhares têm sangue e é o mesmo
sangue. Estás a ver? Como podem olhos frios ser sanguíneos e
explosivos? No fim, vai ser um abraço, um abraço definitivo que
provavelmente não mais se desfará, tomamos um copo e rimo-nos deste
século doloroso que nos separa - não podias ter morrido - e, então sim,
retirar-me-ei para que possas viver o que sobrou. E sobrou muito, tanto
que vai desaparecendo para nunca mais ser lembrado. Como se não
existisses. Como se não existíssemos. Como se não me doesses e eu não
gritasse de dor desde a primeira vez que apontaram a estátua da boavista
e me disseram: "foi o teu bisavô que fez" e eu ouvi "aquilo és tu"
António Alves de Sousa, escultor português,renasce aqui, 125 anos depois
sábado, 5 de novembro de 2016
Acta de abertura de um livro sobre a imortalidade
Etiquetas:
alves de sousa,
escultor Alves de Sousa,
Pedro Guilherme-Moreira
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Adorei,palavras profundas dum apaixonado e que paixão mais sublime!!!!!! Bj
ResponderEliminarTalvez que entendo isso que você descreve...
ResponderEliminarGostei muito deste blogue. Creio ser possuidor de um desenho do seu bisavô com a idade de 13 anos na ESBAP.
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